A dor tem gosto de sangue enferrujado

Cintia Uzêda
2 min readAug 3, 2022

Era uma dor fina e, ao mesmo tempo, encorpada. A ferida pulsava, e eu sentia as fisgadas na região do Chakra cardíaco, além do gosto — e do cheiro — do ferro em minha boca, ferro do meu próprio sangue, que gotejava de dentro para fora, como se tivessem usado uma faca — ou qualquer outro objeto pontiagudo — para esfolar uma parte de mim, um pedaço do meu peito.

A dor não é boa nem má. Não me ensinou lição alguma nem me tornou mais forte, embora eu pudesse — e possa — (re)significá-la de diversas maneiras. Como uma anemia, traz sintomas que não devem ser ignorados: quando aparece, deixa a gente mais fraca, suspendendo temporariamente toda a graça do mundo, debilitando o corpo, vertendo lágrimas cansadas — ou um sangue imaginário.

Oxigênio. Ferro. Sangue. Lágrimas.

E demora… Até “cicatrizar” completamente. Leva um tempo para repor os níveis férricos. Não são dias, são semanas, meses. Algumas pessoas curam em um ano, um ano e meio. Depende.

Dói sentir a dor que determinadas experiências da vida — ou das nossas perspectivas sobre elas — proporcionam, conquanto seja inevitável.

Não falo do sofrimento, que é como o hábito de gemer por uma perna há muito amputada. Falo da dor real, concreta, mesmo que por motivos, eventos simbólicos, abstratos.

Uma dor que, se “varrida para debaixo do tapete”, ou seja, se não experienciada apropriadamente, pode tornar-se doença mental, apatia, desesperança. É inútil fugir dela, seja mentindo para si, seja através de medicamentos, álcool, jogos e excesso de trabalho.

Eu me permiti viver a dor, pelo período em que ela despontara, indo e vindo, em alternância com a alegria. Às vezes, “espetava-me” sem motivo, aquela dor chata, latejante, como um hematoma que nem dá para encostar. Às vezes, ela parecia sumir do mapa, para, logo em seguida, vir com força — bastava um gatilho: uma foto, uma lembrança, versos, citações…

Apagadas as fotos e registros aflitivos — e com o consumo diário de ferro –, a (sanguinolenta) dor foi melhorando.

A sensação da lâmina esfolando o peito e aquele gosto e cheiro de sangue pararam. As lágrimas secaram também.

Passei a respirar melhor e a sorrir mais. Não por não haver mais dor, mas por deixá-la estar, sem resistência, mágoas ou remorsos.

Hoje ela é um minúsculo pontinho, escondido entre os pulmões. Um corte fechado, inofensivo.

Fiz as pazes com a dor: abracei-a, soltando-a depois. Era um encontro necessário, porém efêmero (apesar de soar como uma eternidade).

Não nasci para sofrer indefinidamente, tampouco para sangrar até a morte.

Nasci para ser — inclusive, feliz –, a despeito da dor, que deixa, na boca, um gosto de sangue enferrujado.

Foto de Dids: https://www.pexels.com/pt-br/foto/abstrato-resumo-abstrair-acrilico-6862240/

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Cintia Uzêda

Poeta, escritora, sáfica e budista. From Salvador de Bahia, Brasil.