Anormal

Cintia Uzêda
2 min readJun 3, 2022

Pus o prato no qual havia ceado dentro da pia, sem saber se o lavava, parando na borda do mármore preto, inerte. O estômago revirou levemente, senti a fúria elevar-se em meu esôfago, aquecendo-o, como se fosse magma.

Mãos em riste, cortei o ar com as palmas abertas. Pernas em posição marcial, chutei e soquei o nada. Várias vezes. Golpes de Karatê que aprendi na infância.

Por que havia, em mim, tanta raiva?

“Não é normal” — alegou alguém — “essa realidade injusta que implementamos”.

“Não pode ser normal” — confabulava a minha mente — “essa divisão em classes, essa luta desenfreada pelo poder, o querer ter, querer ser mais do que o outro, a escassez de recursos, as desigualdades sociais…”.

“Foge à nossa essência” — em uníssono, arrazoavam a minha cabeça e outras vozes (da própria consciência) — “passar pela rua imunda, pelo faminto estendido na calçada, pela criança pedinte, por uma mulher agredida, como quem passeia num shopping, virando o rosto para o lado, fingindo não notar”.

Ninguém aguenta aquelas velhas notícias do jornal — a violência em disparada, mutações de vírus, novas doenças, desmatamento de florestas, poluição das águas, territórios invadidos, vidas e inocências roubadas — por dinheiro. Por status, ou uma “poltrona” no Governo. Por indiferença ou vaidade.

Desfiro mais golpes: dedos unidos e afiados como faca. Inspiro mais forte, os pulmões ardem. O exercício ajuda a me acalmar.

Não estou louca. O contexto é que está. A sociedade, o sistema…

Um movimento em falso e me atinjo no braço. Certamente, ficará roxo, igual aos olhos das esposas agredidas — e aos joelhos das domésticas escravizadas.

Paro de me atormentar com discursos indignados. Não tem como mudar o mundo desse jeito.

Nada posso fazer, no instante, a não ser lavar a louça.

Enquanto a enxáguo, prometo realizar somente o que eu puder: ver o invisível, não abafar o indizível, preferir o amor a odiar.

Indo da bucha que esfrega a sujeira até o meu âmago, retorno às origens, a quem sou. “Quem você acha que é, afinal?”, contesto-me, sacudo meus ombros.

Respiro, em silêncio, na ausência da ira — e da cegueira, por ela, provocada –, sem acalentar a vontade violenta de esganar homens perversos, porque não é natural…Combater dores com mais dor, ceder à barbárie — que nunca nasceu conosco, mas aflorou nesta civilização doente –, tornando comum a apatia, o barulho, a omissão ao sofrimento alheio.

Subversiva, escolho outro caminho: sorrio, canto e me importo.

Anormal é não ser humano.

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Cintia Uzêda

Poeta, escritora, sáfica e budista. From Salvador de Bahia, Brasil.