Como o ar que respiramos

Cintia Uzêda
3 min readApr 4, 2022

Dizem os especialistas em aeronaves que, no caso de uma emergência, assim que as máscaras de oxigênio caírem, cada passageiro, de imediato, deve colocar a sua, antes mesmo de ajudar o seu companheiro de assento. A justificativa dada é que, com a despressurização da cabine, o indivíduo perde a consciência em brevíssimos segundos –e, creio eu, uma pessoa inconsciente não serve para nada nessas horas.

Tal regra do protocolo de segurança em voos me parece oportuna, não só para viajar como também para viver melhor. Afinal, é um “lembrete” de que precisamos nos priorizar, certo?

Todavia, apesar de, em tese, ser simples, essa “lição” não é tão fácil de aplicar na prática.

Crescemos escutando o quão importante era sermos generosos e gentis, com quem quer que fosse. Nossos professores, pais e familiares, volta e meia, abarrotavam nossa cabeça com discursos cristãos, acerca do egoísmo — e de quão “maléfico” ele era –, ou sobre a necessidade de sermos “bonzinhos” — 24 horas por dia, 7 dias por semana –, induzindo muita gente bacana a ser people pleaser, ou seja, a “agradar a gregos e troianos” em troca de afeto e/ou validação.

Então, ao virarmos adultos, observamos que, sem exagero, a maioria das nossas ações voltou-se apenas a atender às expectativas alheias — dando em demasia (sem a capacidade emocional para isso) e nos contentando com pouco, com raríssimas escolhas legítimas, efetuadas por livre e espontânea vontade, em prol do nosso bem-estar e crescimento.

Eu, por exemplo, me arrependo de cada minuto que gastei buscando me encaixar nos espaços — minúsculos –, nos quais queriam que eu me enfiasse, com o intuito de me tornar “querida” ou “amada” — e é nos relacionamentos, principalmente os afetivo-sexuais, em que mais nos “sacrificamos” dessa forma grotesca.

Quantas vezes modificamos determinado aspecto essencial que nos faz extraordinários, a fim de sermos aceitos por um grupo ou pretendente?

Omitimos um cacoete — ou uma mania; forjamos uma risada “polida”; mudamos o gosto musical, ou, pior, os nossos valores pessoais — até o jeito de ser!

Não afirmo que, ao nos relacionarmos, devamos ser intolerantes e fechados à mudança. Agir com flexibilidade em certas circunstâncias é maduro e benéfico, desde que, ao cedermos (de preferência, voluntariamente), não nos sintamos como se tivessem extirpado uma parte indispensável do nosso “Eu”.

Diante das minhas vivências difíceis, passei a questionar o papel dos relacionamentos interpessoais e o lugar no qual os posicionava — não raro, encontravam-se acima de meus projetos, vontades e interesses. Deste modo, realoquei-os para que permanecessem abaixo da minha relação comigo.

Conquanto estejamos constantemente interagindo com as pessoas, direta ou indiretamente, em variados níveis de intensidade, é loucura negligenciar-se — a não ser que você queira sair por aí como uma “muleta humana” (o que ninguém nasceu para ser), ou um passageiro desacordado (lembra da máscara de oxigênio?).

Depois que descobri que um tantinho de egoísmo não me faz uma “vilã da Disney”, as coisas mudaram bastante. Eu até criei um “minimanual do egoísta sensato” e vou compartilhar as principais ideias aqui:

Que nós façamos o que realmente almejarmos (isto é, tomar atitudes que nos soem autênticas e condizentes com quem somos, sem a expectativa de obter algo em retorno — especialmente se for a aprovação e/ou reciprocidade do outro).

Que o que quer que estejamos sentindo — raiva, tristeza, frustração, insatisfação — seja vislumbrado e dito (desde que com respeito ao direito de expressão dos demais e sem a intenção de ofendê-los ou magoá-los).

Que possamos: decidir, por nossa conta e responsabilidade, qual direção seguir; concentrar nossa atenção, tempo e recursos mais em nós — na nossa saúde, física e mental, no nosso desenvolvimento pessoal, espiritual, profissional, em nossos sonhos e objetivos etc. — do que no(a) parceiro(a), posto que o propósito de uma relação é andar lado a lado, não transformar quem você ama em sua (única e exclusiva) razão de existir; impor limites saudáveis e estabelecer uma comunicação assertiva e empática, fundamentais para todo e qualquer relacionamento durar e funcionar direito.

Por fim, que estejamos cientes de que nós também devemos nos incluir nas práticas de zelo, compaixão e solidariedade que direcionamos àqueles com quem convivemos e amamos.

Veja: eu e você somos um floco de neve com padrão irrepetível, uma partícula singular neste vasto universo, e, embora seja meio clichê, se não reconhecermos o amor dentro de nós, vai ser difícil encontrá-lo do “lado de fora”.

O autocuidado, portanto, torna-se mais significativo do que abraçar todas as causas e necessidades alheias. Deve ser como o ar que nos adentra, urgente e inestimável, — e ninguém pode ajudar outra pessoa sem, primeiramente, respirar.

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Cintia Uzêda

Poeta, escritora, sáfica e budista. From Salvador de Bahia, Brasil.