Desapego

Cintia Uzêda
5 min readJul 4, 2022

Senti um pelo macio roçar na pele, tendo a mão empurrada pela cabecinha de Luna, minha gata, que forçava gentilmente a passagem para alcançar o espaço vazio entre mim e o livro que eu segurava numa das mãos. Ela se aconchegou em meu pescoço, usando-me de apoio para se deitar. Sorri ao observá-la (impossível não sorrir). Como eu poderia não amar aquele serzinho peludo, ousado e “ronronante”? E, mesmo sabendo que, um dia, ela partiria rumo ao “reino dos petiscos”, como apelidei o céu dos felinos, como eu poderia não me apegar a ela?

Desisti da leitura de Arendt, por mais prazerosa que fosse, para me concentrar em Luna, cujo pelo esboçava um padrão curioso de listras — indo do centro às extremidades. Sem me conter, acariciei sua pelagem, pensando no quão fácil era apegar-se a algo ou a alguém: aos nossos títulos, ideias, afetos, ideologias, rótulos, corpos, emoções, pensamentos, candidatos, relacionamentos, ilusões…

Numa autoavaliação sincera e espontânea, verifiquei que, há bem pouco tempo, tive de me livrar de certos prismas, aos quais me aferrara. Segura das minhas opiniões, eu havia me agarrado de tal modo a “estar com a razão” que precisei parar para refletir se tinha algum sentido — e coerência — no que eu acreditava, e se os meus pontos de vista já não se encontravam ultrapassados, “fora da validade”. De tão atada que estava a eles, desconsiderei fatores relevantes, como, por exemplo, o contexto e as circunstâncias atuais, bem como a própria transitoriedade das coisas.

No entanto, a admissão de que as minhas colocações não eram tão devidas assim me doeu menos do que notar que eu estava viciada à sensação de “superioridade” intelectual, esquecendo-me de que a seara das certezas está cheia de arapucas e empecilhos.

É horrível receber de mim mesma um beliscão desses e vislumbrar que posso conceber percepções imprecisas (baseadas em minha “bolha” e capazes de gerar preconceitos conflituosos com a realidade), ou, pior, que eu posso hastear o orgulho bobo de me achar impecável — e de cismar que tal atitude agrega valor a quem sou.

No momento em que me atentei para isso, entendi a importância do desapego.

É imperioso, contudo, salientar que o desapego real — e saudável — não é sinônimo de abandono, negligência, desistência e “coração de gelo”. Se “desapego” se conceituasse assim, eu certamente fugiria dele, como fujo das bombas e foguetes que explodem no São João.

O que seria, então, o desapego?

“Desapego”, a meu ver, concerne ao equilíbrio, à tênue linha entre “desejar” e “carecer”.

Se gosto de uma pessoa, é natural que eu nutra um tanto de apego por ela, que a queira por perto (especialmente no princípio, quando estamos nos conhecendo e surge aquela energia alegre, um tipo de excitação em se desvendar as peculiaridades alheias), ou que me entristeça, caso ela me ignore ou rejeite. Ao escutar uma música — ou conhecer uma ideia, uma história — bacana, tendo a repeti-la — uma, duas, três vezes –, pois aprecio que ela se entranhe na mente, como se fosse parte de mim.

O afeto tem muito querer envolvido, e eu, particularmente, me ligo fácil ao que/a quem me cativa, conquanto não pretenda nem possa reter, segurar quem ou o que almejo que fique ao meu lado.

O tempo, as causas/leis naturais ou outras pessoas se encarregarão de modificar os eventos — e, com mais frequência do que imaginamos, os sentimentos –, enterrando as nossas seguranças e “garantias”.

Assim sendo, sou obrigada a reconhecer que, quando se confunde o simples “desejar” (no sentido de ter uma preferência) com o “carecer” (a ânsia, o “precisar demais” de algo ou de alguém para se atingir a plenitude), o sofrimento se apresenta — literal e/ou conotativamente — na forma de luto, de perda: cai de posição quem se acostumara ao pódio; finda-se a relação promissora; o vaso de cerâmica predileto de alguém se espatifa; morre quem estava “lutando pela vida” por horas, semanas, meses, anos seguidos…

Claro que estou exagerando aqui.

Ninguém deveria passar por situações extremas para enxergar os efeitos nocivos do apego excessivo.

Entregar-se 100% ao jogo (competindo mais consigo do que com os demais) é diferente de cobrar-se, de um jeito venenoso e autodestrutivo, para levar o troféu todas as vezes em que se joga (por apego à vitória, ao status de vencedor); tentar acertar mais do que errar não equivale a vestir-se com um manto de infalibilidade eterna (apegando-se às próprias convicções); gostar de um jarro não é o mesmo que esperar que ele nunca se quebre — ou, no caso das pessoas, que elas nunca faleçam, rompam conosco ou se afastem de nós.

Querer (e criar expectativas) é um comportamento típico dos homens, embora nada — conquistas, bens, títulos, relacionamentos, ambições — esteja, de fato, assegurado, sobretudo nas mãos que “apertam demais” e em mentes que se deixam esmagar com a insatisfação constante, com as vontades compulsivas não concretizadas e com as verdades absolutas.

Nenhum ser humano comum conseguiria negar o quão incômodo é desconhecer o futuro das suas relações (o quanto vão durar e se continuarão “de acordo com os planos”), assumir riscos sem saber se vai ganhar ou perder, relembrar que um objeto eventualmente se quebrará e que os seres amados não são imortais.

Todavia, exercitar o desapego vale o esforço.

A vida acaba sendo mais emocionante sem o controle excessivo e as ambições desmesuradas. Terminamos por descobrir que o cultivo do amor (que é livre, multifacetado, inevitável e imprevisível), no lugar da exigência e da pressa em se arranjar um “parceiro ideal”, traz mais regozijo do que forçar uma conexão com alguém, e que desfrutar as etapas dos processos que a vida nos proporciona é mais divertido do que se preocupar em obter (sempre) os melhores resultados.

Posso estar errada, mas acho que desapegar-se consista em definir um destino — ou meta, ou sonho, ou desejo –, sem precisar concretizá-lo(a), obtê-lo a todo custo para ser feliz.

Talvez seja também adotar a consciência de que o domínio sobre os elementos externos a nós, ou que não nos pertencem, é ilusório, e que, para evitar maiores sofrimentos, é indispensável seguir (não ir contra) o fluxo da vida, andando harmoniosamente pelo caminho que ela nos convida a trilhar.

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Cintia Uzêda

Poeta, escritora, sáfica e budista. From Salvador de Bahia, Brasil.