O que é Deus para você?

Cintia Uzêda
5 min readJan 5, 2023

No decorrer da semana, recebi do grupo budista a tarefa de responder, com minhas palavras, à seguinte pergunta: “O que é Deus?”.

Como não havia prazo para enviar a atividade, ponderei, por uns dias, sobre a questão, lançando uma enquete no Instagram a respeito do tema.

O resultado da brevíssima pesquisa foi, no mínimo, curioso: a maioria esmagadora dos participantes afirmou acreditar em Deus, cada um com uma acepção diferente do divino.

Inspirada pelo evento, lembrei da época em que eu havia ido assistir ao filme “O príncipe do Egito”, uma animação razoável que retrata a saga de Moisés, “eleito” por Deus para livrar o povo hebreu da servidão. Determinada cena, no entanto, me marcou: a última das dez pragas enviadas por Deus (que ansiava pela libertação hebraica, mas parecia não ter compaixão por mais ninguém) ceifou a vida de milhares de primogênitos egípcios — em sua grande parte, criancinhas e bebês.

Cruzei os braços e afundei na poltrona do cinema, indignada, quase enfurecida — não havia justificativa para uma atitude tão cruel como aquela.

Por que Deus, um ser supostamente bondoso e justo, arquitetaria um projeto tão bárbaro?

Posteriormente, ainda criança, deparei-me com essa história na Bíblia Sagrada, no Livro do Êxodo. Desde então, compreender Deus passou a ser prioridade, uma urgência existencial, roubando várias horas do meu sono (até hoje, divagar sobre isso me inquieta e ensimesma).

Após longas análises e exaustivas reflexões, cheguei à conclusão de que eu tinha mais dúvidas do que certezas e, conquanto não houvesse conseguido dar uma resposta satisfatória à questão inicial — “o que é Deus?” -, ao menos fui capaz de ir destrinchando o que deus não é, em minha humílima opinião.

Desprezo a noção de Deus nas religiões cristãs (e suas vertentes), afinal, uma divindade inventada à imagem e semelhança dos homens — consistindo na figura de um macho barbudo, branco, cis e enfezado, dito bondoso, embora, paradoxalmente, afeito a represálias e castigos, que visa controlar suas criaturas à base do terror, da culpa e da brutalidade — não me soa nada benevolente.

Questiono, inclusive, inúmeros fatores dessa versão da deidade: por que um Deus onipotente e onisciente necessitaria de um purgatório e um rol de martírios para infligir às suas filhas e filhos, sendo que Ele mesmo lhes deu livre arbítrio e jurou fidelidade e amor infinitos e incondicionais?

E, sendo Deus todo-poderoso, eterno e magnânimo, que chance teria um “diabo” — a suposta personificação da maldade — contra o Criador? Aliás, para que inventar o conto de um anjo caído que se volta contra o Pai celestial, rebelando-se contra as decisões divinas e convertendo homens à condição de “pecadores”?

Ou, ainda: que Deus — senão um proveniente do patriarcado — provocaria a morte e o sofrimento de inocentes, apenas com o intuito de impor as suas vontades?

Essas foram algumas das razões que me fizeram abandonar os institutos religiosos — e a definição de “Deus” que eles apregoam.

Morto o deus bíblico, voltei-me para a natureza.

Durante a meditação cotidiana, os questionamentos vieram com força: seria deus a frondosa árvore ao meu lado? O céu azul acima de nós? O ar que exalamos e que preenche o espaço ao nosso redor?

Todos esses elementos naturais me despertavam uma sensação de paz, pertencimento e tranquilidade, porém seriam eles “deus”?

Se a natureza fosse um sinônimo para “divindade” e nós, humanos, a destruíssemos com a nossa cobiça, ignorância e soberba (exatamente o que estamos fazendo agora), Deus deixaria de existir?

Descartei tal possibilidade diante de uma citação do filósofo William Paley, lida na obra de John C. Lennox (2009) *, um matemático da Universidade de Harvard, que aborda a existência divina:

Mas suponhamos que eu tivesse encontrado um relógio no chão e que devesse investigar como ele foi parar ali […]. Alguém deve ter feito o relógio: deve ter existido […] um artífice […] que o fez com a finalidade à qual nós achamos que ele de fato corresponde; alguém que compreendeu sua construção e projetou seu uso […]. Todas as indicações de perspicácia, todas as manifestações de projeto presentes no relógio existem nas obras da natureza; com a diferença, a favor da natureza, de elas serem maiores ou mais numerosas, e isso num grau que ultrapassa todos o [sic] cálculos. (p. 74)

Deus é ou deve ser, pois, o relojoeiro, não o relógio (que, sim, contém a marca do relojoeiro, mas não é o relojoeiro); algo que está além das suas criações — sendo elas a natureza e suas leis.

Ora, o que mais havia para se desconstruir, então?

Deitei-me na cama, encarando a janela aberta. Por brevíssimos instantes, um facho de luz quase me cegou, e, de repente, surgiu uma ideia:

E se Deus fosse uma espécie de “fonte energética originária”, responsável por ser a “causa primeira” de tudo que há?

Enquanto energia, é sutil e “modelável” — abrangendo o tudo e o nada –, e “deus” seria tão-somente o nome que se dá ao princípio vital, ou “causa primária” que ocasiona e fomenta o existir, ordenando o caos, dotando os seres de consciência e projetando as condições perfeitas para os corpos e espécies sobreviverem nos ambientes físicos mais inóspitos; uma essência que não condena, tampouco monopoliza e/ou protege (porque a vida, que, intrinsecamente, é inextinguível, democrática, inteligente, justa, abundante, livre, fornece o seu sopro sem requerer qualquer coisa em troca) — nada exige de nós: nem clemência, nem dízimo, menos ainda sujeição.

E pouco importa se acreditamos em “deus”.

“Deus”, conforme conceituo, apresenta-se como a energia que nos compõe, integra; nos interliga às demais formas de vida e expressa-se para nós através de nós, do “ser quem somos” e do “ser-no-mundo”.

Não posso, entretanto, comprovar que estou certa. O que sei — e ouso proferir — é que, cada vez que calo para observar — a mim mesma e ao mundo lá fora — , manifesta-se, em meu interior, uma força, algo que vibra ininterruptamente, instigando-me a dar o próximo passo; a viver plenamente, a despeito da ausência das respostas que almejo. Consigo vê-la — essa potência — brilhando nos olhos dos outros seres também; emanando do mato, das árvores, das flores. Está em tudo, contém tudo.

A definição — mais acurada e objetiva — de “deus”, contudo, segue incógnita — um espaço em branco. Desconheço uma resposta fácil e simples para “o que é Deus” ou talvez minha mente seja incapaz de arcar com tal responsabilidade.

Assim sendo, prefiro manter a questão em suspenso; respirar as possibilidades sem elaborá-las tanto com o intelecto puro. Então, relaxo, e o que me ocorre quando deixo os pensamentos fluírem é sempre a sentença que aparenta ser (mas não é) incompleta:

“Deus é”.

LENNOX, John C.. Por que a ciência não consegue enterrar Deus. Oxford: Lion Hudson Plc, 2009.

Fonte: <a href=”https://br.freepik.com/fotos-gratis/banco-de-madeira-no-deck-do-lago-cercado-de-verdes_17247817.htm#query=banco%20de&position=0&from_view=keyword">Imagem de wirestock</a> no Freepik

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Cintia Uzêda

Poeta, escritora, sáfica e budista. From Salvador de Bahia, Brasil.