Uma história de amor

Cintia Uzêda
4 min readApr 26, 2022

Caso você tenha iniciado a leitura deste texto agora, sugiro que não a prossiga se estiver ocupado(a), ou de pé.

Passe um café, prepare um chá ou chocolate quente.

Sente-se. Estique as pernas, relaxe.

Deixe-me narrar algo real — e extraordinário — que ocorreu comigo.

No céu de julho daquele ano — 2014, para ser mais exata –, o sol do meio-dia prenunciava calor e ar seco, sem perspectiva de chuva; as árvores e plantas esbanjavam um verde nítido e fresco, que em nada se associava à estação vigente. Era um inverno atípico em Salvador.

Eu havia acabado de resolver as últimas pendências diárias e sentia fome, estava exausta e de péssimo humor. Assim, impossibilitada de ignorar as queixas fisiológicas, escolhi, de imediato, o primeiro restaurante (de esquina) aberto.

Após montar o prato no buffet, optei pela mesa próxima à janela, comendo, ligeira e vorazmente, quase sem usufruir da refeição. Depois do almoço, levantei-me da cadeira a contragosto, para devolver a bandeja e o prato à cozinha do estabelecimento. Nesse instante, reparei que uma mulher acompanhava meus movimentos.

Ninguém liga muito quando se percebe observado(a), sem querer, por outrem. Isso acontece com certa frequência, não é?

Os olhares se cruzam para, logo em seguida, se repelirem, porque é natural, sobretudo para indivíduos mais discretos, querer evitar o vexame da “inconveniência”.

Retornei ao meu lugar, ciente de que fosse tão-somente uma coincidência, algo casual, sem importância ou significado.

Então, pela segunda vez, enquanto me conduzia ao banheiro, notei um familiar par de olhos femininos sobre mim, tal qual carrapichos que se aferram à roupa, onde quer que se vá.

Perplexa e irritadiça, eu só conseguia pensar em quem teria tamanha audácia e falta de noção. Quem ela achava que era, afinal?

Regressando à mesa, recolhi os meus pertences, decidida a me retirar do local — e a dar um “basta” na suposta indiscrição alheia. No momento em que constatei, pelo canto do olho, que a garota permanecia no mesmo lugar, ergui a cabeça, numa franca demonstração de impetuosidade, “esmagando” os meus olhos contra os dela.

Contudo, em vez de intimidá-la, como eu havia planejado, foi a moça quem me envolveu, com a sua íris penetrante. Minhas bochechas enrubesceram com a intensidade do seu olhar.

Existia força e delicadeza — dentre outras singulares características — em sua alma, cuja essência eu ia descortinando, na medida em que nossos olhos se embaralhavam, famintos pelo que apreendiam.

Através da visão periférica, vislumbrei o seu cabelo castanho, longo e liso, na altura dos ombros; os braços longilíneos, cobertos pela blusa branca; mãos medianas e dedos esguios, que seguravam os talheres com graciosidade; ela possuía uma postura altiva, sem transparecer arrogância. Os lábios rosados se equilibravam com a paleta de cores que compunham a sua aparência.

O transe telepático durou ínfimos segundos, a despeito da sensação de atemporalidade…

Os meus passos cambaleantes rumo à saída, arrastados pelo salão do restaurante, em nada atrapalhavam a ligação entre nós — um laço impossível de romper –, causando uma brecha no espaço-tempo.

Apenas no segundo em que nossos olhos se apartaram, o burburinho recomeçou: pratos e talheres tinindo, gente falando alto, ligações de celulares, buzinas… Sons do cotidiano.

Um dia trivial.

Já na calçada — sem que me desse conta do quanto eu caminhara –, uma borboleta amarela, com linhas vermelhas em ambas as asas, pairava a alguns palmos da minha testa.

Lembro de ter sorrido ao admirá-la (por sinal, continuo sorrindo na presença de borboletas). Ela não estava voando só. Sua ‘parceira de dança’, uma borboleta semelhante, rodopiava com ela.

Desconheço os planos do universo, ou as configurações astrológicas, cármicas, metafísicas que permitem a incidência de situações como esta que vivi. Narrá-la aviva a imagem daquela jovem em minha mente — e a reconheço como parte de quem me tornei. Nunca mais nos encontramos, embora eu a guarde em um baú interno de recordações, a sete chaves, até o fim dos dias.

Convicta de que nada aconteça fortuitamente, sejam os olhares que se unem, sejam as borboletas flutuando pelo ar, descobri — ou talvez eu já soubesse — que o amor não é bem algo que se adquire, nem que se aguarda chegar; ele não esbarra em nós em algum momento da existência (quando acreditamos estar ‘prontos’ para amar), nem promete que os nossos relacionamentos (em especial, os ‘românticos’) serão sempre ‘bem-sucedidos’ (seja lá o que isso signifique), tampouco longevos.

Tal evento me chacoalhou para a legítima natureza do amor, que surge, mesmo em face da mais remota das possibilidades; revela-se sob incontáveis e múltiplas formas (como o abraço de um amigo, risos espontâneos, escutas atentas, atos de altruísmo e bondade…); contraria as nossas expectativas e o senso de urgência, jamais germinando cedo — ou tarde — demais em nossos vínculos.

O amor é a própria vida — infinita e diversa; é o caminho em si, que cabe à humanidade percorrer, consciente ou inconscientemente.

Uma hora ou outra, o amor nos convoca a despertar para o autorreconhecimento de que somos uma das suas facetas e expressões magníficas; de que, apesar da solitude, ninguém é separado(a) de coisa alguma. Ninguém está sozinho(a).

Pelo menos, foi isso o que a minha história de amor me ensinou.

Torço para que ela lhe inspire a viver — e, quem sabe um dia, contar — a sua.

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Cintia Uzêda

Poeta, escritora, sáfica e budista. From Salvador de Bahia, Brasil.